Citações:

Sem o direito natural não há Estado de direito. Pois a submissão do Estado à ordem jurídica, com a garantia dos direitos humanos, só é verdadeiramente eficaz reconhecendo-se um critério objetivo de justiça, que transcende o direito positivo e do qual este depende. Ou a razão do direito e da justiça reside num princípio superior à votante dos legisladores e decorrente da própria natureza, ou a ordem jurídica é simplesmente expressão da força social dominante
(José Pedro Galvão de Sousa, brasileiro, 1912-1992)

terça-feira, 26 de março de 2013

Os Peixes Grandes Comem Os Peixes Pequenos

Um excelente tema a exigir uma reflexão panorâmica, ao estilo BBC, «Vida (num mundo) selvagem.» 
Num mundo a múltiplas vozes o espaço autoral também já não é ele um espaço de soberania. A edição «sofre» hoje do fenómeno «globalização», um fenómeno que tanto mata como engorda. No mundo soberano a defesa da honra era local, neste mundo de hoje a defesa da honra é glocal. No tempo pré-moderno os suseranos arregimentavam os seus exércitos através de noções de comunidade de afetos. 
Hoje os «fetos» que deambulam pelas antigas praças são já muito mais coloridos, vindos de lugares distintos e dispersos e não de pequenas aldeias, todas elas muito parecidas, feitas a uma medida quase tribal. A edição tornou-se assim - e também - um negócio glocal. O autor soberano deixou assim de estar dependente de um suserano local que vai alimentando a sua própria casta, ordeira e dependente, e que lhe presta muitas vezes vassalagem não por sintonia, mas por um interesse de sobrevivência. 
Há um autor, sociólogo, muito dado a temas de globalização, cidadania e identidades com um pensamento muito pouco «mainstream», muito «out of the box» e que merece uma visita de interesse: Boaventura Sousa Santos. Formula o autor a globalização em dois tempos: o tempo do localismo globalizado (quando determinado fenómeno local é globalizado com sucesso) e o globalismo localizado (quando as condições locais se desestruturam e reestruturam de modo a responder a esses imperativos transnacionais). 
E é neste tempo/lugar que estamos hoje. A pequena tempestade deu lugar ao tornado relâmpago; o pequeno pingo, à carga de água mais brutal. Pelas veredas da montanha o estrato vegetal é arrastado e substituído pelas pedras (calhaus?) mais angulosos, comuns (rafeiros para alguns), a maior parte das vezes estranhos à paisagem. Mas a paisagem aos poucos irá se transformando, reestruturando gostos, eliminando gostos, espaço - temporalizando o mundo a um globo que nos caberá na palma das mãos. Até o porco já não será (é) só porco-preto, a sua denominação de origem já o encontra com outros padrões em outros tantos lugares. Aliás já não o era desde que o muppet - show nos deu a conhecer a figura do sapo cocas e de miss Piggy: as suas cores de pele não desmentem a sua proveniência. 
 Vivemos no mundo da financeirização, em que tudo se compra e tudo se vende. E é por isso que precisamos cada vez mais de pequenas aldeias locais imunes e resilientes à normalização empobrecedora. 
Aos grandes grupos suceder-se-ão os pequenos glocais, (de nicho), cujas poções mágicas derrotarão as hordas mais substantivas. E essa poção mágica só tem um nome: qualidade. Qualidade que tem o seu tempo de maturação, o seu tempo de paciência e espera. 
Nada é excludente: tudo se complementa. 
E tudo se transforma e se democratiza: até a escrita.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Comboio Noturno Para Tanto Lugar

  1. Olha, vês
  2. Se a estação fria desperta
  3. a tua atenção
  4. por detrás do teu olhar
  5.  
  6. é porque a uma estação que morre
  7. deste demasiada importância (...)
  8.  
  9. é que tudo o que desperta,
  10. adormece,
  11. e à estação fria
  12. sucederá a estação quente
  13. recheada de cor
  14. e de tantos outros milagres (...)
  15.  
  16. e pelo murmúrio dessa estação
  17. saberás que haverá sempre nela
  18. muitos comboios a partir
  19. mas muitos mais a chegar.

terça-feira, 19 de março de 2013

A Publicação Essa Arma De Dois Gumes E De Muitas Dores De Cabeça

Parece-me neste momento em que a procura suspendeu a respiração, nem a auto-edição, nem a própria edição totalmente assumida por editora, darem lucros ao autor. Perpassa nos desabafos aqui e ali de nomes consagrados, uma desilusão pelo seu trabalho de escrita como trabalho remunerado, muitas vezes não pago ou insuficientemente pago. 
Assim, o risco estará cada vez mais do lado dos escritores, que têm de perceber o motivo por que escrevem.

Ainda esta manhã zurzia contra o finlandês Olli Rehn, o holandês Jeroen Dijsselbloem, os alemães Wolfgang Schauble e Jorg Asmussen .
Zurzia pela sua postura de senhores da mittleuropa, de formiguinhas egoístas perante as sulistas cigarras. Schauble, o alemão, tem até esta expressão engraçada de afirmar a «pressão incrível» a que sujeitaram o pobre cipriota. 
Pergunto-me: e a pressão incrível a que devem estas sujeitas a grande maioria das editoras, senão a totalidade, cada vez mais migrando para espaços de serviços, da revisão ao editing», à própria intermediação com as gráficas, perante a avalanche de custos, de obras – primas e da rarefacção de receitas por venda dos seus produtos iniciais? A pressão pela sustentabilidade e pela sobrevivência do seu modelo de negócio é simples de perceber num mundo em que disseminou teclados ao pé dos dedos de cada uma das individualidades - que somos nós - e da oferta de preenchimento dos tempos de lazer ao infinito – ao contrário dos tempos de qualidade. 
Quem não está distraído, apreendeu e percebeu o grito desesperado dos editores perante a resma de «obras – primas» colocadas diariamente perante os seus olhos, sentindo a angústia pela cooptação por menos de uma mão cheia (e que risco correm podendo deixar escapar algo que o gosto e o aleatório resolva consagrar?)

A realidade é que estamos em mudança acelerada. 
Quem quiser ser lido no futuro terá de passar por blogues, cooperativas de escritores, nichos de leitores e novas formas de publicação mais baratas aos poucos leitores que restarão (seremos todos muito mais escritores da nossa própria realidade!) e aos muitos escritores que se adivinham; e a um tempo de aprendizagem cada vez mais demorado que permita uma perfeição anterior sufragada pelo tempo - e em grande medida pela sua edição de autor ou notoriedade pelo concurso literário.

Autopublicação

Para além de transparecer timidamente nalgumas coletâneas, nunca publiquei para venda ou mesmo escrevi para o prazer dos outros.
Não que o prazer dos outros seja indiferente ou as suas observações não motivantes - afinal vivemos num mundo de afetos - mas porque sempre foi um prazer de exercício pessoal não solitário apenas acompanhado pelo espelho do conhecimento e da alma, não regateando o mundo do sonho da terra do nunca, nem nunca alienando o real da terra do sempre.
Espero como Gepeto - à quase dezena de originais encadernados de alguns milhares de páginas nas prateleiras - dar forma e vida a estes meninos de pasta de papel, a estes pinóquios » feitos de sonhos, verdades, consequências, na minha oficina, não por osmose mas por convívio, tornando-os - por um breve momento que seja - garbosos meninos - livros de verdade.
Recentemente enviei um ou outro para apreciação em concursos – afinal como seres humanos somos diariamente escrutinados pelas nossas (dis) semelhanças, uma forma como outra qualquer de receber uma festa, um afeto, um carinho, alimentando pequenas fomes sempre frágeis e sensíveis, condição que perceciono como comum a esta vontade e paixão de perceção daquilo que nos rodeia; e uma forma, também, de exigência para com o combinado de palavras, ritmos e formas da escrita como comunicação.
Neste mundo de «enclousures», escrever para além da gaveta será uma sinapse de mim para o outro, um regresso aos campos comunitários de grande liberdade, fugindo a um mundo cada vez com menos cor e cad vez mais cercado.
Mas nunca me iludi - como quem se ilude com a publicação como vaidade de viandante, neste caso tripulante dos tempos glamorosos da aviação – num tempo em que poucas ou nenhumas rotas estão por traçar, e em que as viagens são já pouco mais do que um bocejo.
Tive a suprema sorte de encontrar no mar dos bits da rede estas «horas extraordinárias», onde tenho a certeza de partilhar um incondicional amor pela forma lida da escrita, e de aprender, e isso basta-me como este poema que abre um dos meus encadernados de poesia:

A tua biografia espelhada
Não foi um evento que eu tivesse procurado
Mas também como sabes
Nada é em vão
Nem a tua vontade de ser amado
Nem a ilusão de através da obra
Nos mantermos vivos.
A tua biografia espelha
As almas através da imagem
(…)

sexta-feira, 15 de março de 2013

A Ecclesia E A Literatura


Por esta altura é a ecclesia católica que conta. As mensagens da bíblia fazem deste um dos melhores livros de todos os tempos, como se condensasse todos os ensejos e ensinamentos do homem, face aos tormentos da vida na terra.
Francisco, o jesuíta, um pastor no sentido de guardador de um grande rebanho, o representante de Cristo na terra, empunhou estas duas frases aos seus apóstolos:
«perseverar e que encontrem novas formas de levar a evangelização a todos os cantos da Terra"; "a idade é a sede da sabedoria da vida. Dêmos esta sabedoria aos jovens, como o bom vinho, que com a idade melhora". 
Para mim a igreja católica, como todas as Ecclesias, não é mais do que o guardador de grandes livros com o título «Humanidade». É este grande livro que eu espero que Francisco reveja e nos dê todos os dias a ler uma página.

Coisas

Sempre pensei que não interessa tanto o que as coisas são, mas aquilo que pensamos que são. A nossa perceção das coisas é apenas uma, entre outras diferentes para os outros. A realidade assim, nunca é só uma.
Há múltiplas realidades com que nos confrontamos todos os dias e é esse confronto que vai alimentando a nossa realidade das coisas.
Passar por cima da realidade dos outros é pois, assim, ignorar-mos para além de nós próprios. Acumularmos todas essas realidades, não sendo fácil, é pois, assim, termos o ensejo de estar mais perto da natureza e observamos o nascimento e a morte das suas múltiplas formas.

A SEDES e a Nova Teoria Da Felicidade

Ontem a SEDES lançou o seu último projeto de responsabilização da sociedade civil e que permitiu extrair as seguintes conclusões: uma descrença muito grande por alguma elite na autorregeneração do sistema, de um sistema fechado e tomado pelos interesses dos detentores do poder efetivo (das percebidas verdadeiras elites atuais, as elites do poder: os partidos - na perspetiva da definição de Gaetano Mosca; e a divisão de opiniões entre os que pensam serem as instituições responsáveis pelo atual estado das coisas e os que pensam serem essas instituições os homens que por elas passam (e a crise da sociedade atual derivar de um quase determinismo similar aos altos e baixos de Kondratieff - estando nós hoje no inexorável ciclo baixo dos valores, que modelam as instituições).
Um dos intervenientes lembrou, e bem - já que tem tempo de lembrança suficiente para isso - que há num país aparentemente mais formado e informado verdadeiramente três responsáveis pelo atual estado de coisas: a desresponsabilização individual, a falta de valores, a ética - de serviço.
A essas três, que penso constituintes do atual estado de coisa dos atuais ditames democráticos, acrescentaria uma quarta: as elites portuguesas, sempre divorciadas das sempre estigmatizadas e enjeitadas massas do povo português.
Apetece perguntar: e o povo, pá? haverá democracia sem povo ou tudo não passará de um jogo de espelhos dos enjeitados a cada momento e da rotatividade do poder?

A Nova teoria da felicidade passa, assim, por nos lembrarmos de que o desejo, a necessidade e o prazer, são um combate de todos os dias e não uma lembrança para tempos piores. 
E de nos lembrarmos de como os nossos interesses imediatos e egoístas - de que temos muita dificuldade em nos separar, mesmo quando assumem a forma exclusiva de um momento de prazer pelo reconhecimento - nos podem trazer uma felicidade imediata em detrimento da felicidade perpétua, de que a paz perpétua de Immanuel Kant - tornando-nos uma verdadeira comunidade em detrimento do mais simples estágio de sociedade - já parecia um projeto inicial coletivo.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Quem Gosta De Escrever, Escreve!

Quem gosta de ler, lê! Quem gosta de escrever, escreve! E quem gosta de ser, é? Talvez! Não sei! Porque o que parece nem sempre é!

O Dinheiro: O Erotismo da Escrita

Tinha acabado de ler este post da MRP sobre narrativas em suspenso quando me cruzei com esta pequena nota sobre E. L. James, a autora afamada e (a)fortunada das 50 Sombras de Grey, que nem sequer como sombra teria espaço no meu lugar. Diz a nota, penso que não lhe posso chamar notícia, que notícia seria as «50 Sombras de um Franciscano de seu nome Francisco», que E.L. “vai escrever um manual de escrita para quem quer ganhar dinheiro. Truques de quem conhece as técnicas de como agarrar um leitor – e não o deixar escapar.” 
Será pelos colarinhos? 

quarta-feira, 13 de março de 2013

A Realidade de Homero

Frase muito bela esta: «Homero criou uma realidade em vez de se limitar a espelhar a do seu tempo».
Também sou dos que penso que a escrita literária não tem necessariamente de ser interventiva, o que é diferente de o escritor ser alheio à realidade. O escritor, sim, deve ser interventivo à sua maneira, o que não significa que faça da sua obra um manifesto político, basta apenas demonstrar que está vivo!
A realidade é o que é, e a política por definição escolha, opção, algo que fazemos desde que nos levantamos até nos deitarmos - e talvez mesmo quando sonhamos ou temos pesadelos com o patrão.

Nem a propósito a minha última leitura de Antony Beevor e o seu «Paris após a libertação», onde escritores como Sartre, Camus, Hemingway e muitos outros assumem posições e intervenção política acentuada.
E nem por isso deixam de ser extraordinárias autores.
E nem por isso deixam de espelhar a realidade de forma não jornalística e ficcionada, como Sartre na sua extraordinária trilogia «Os caminhos da liberdade.»

O Projeto Adamastor

Mais um projeto aqui a crédito do clube dos escritores mortos?, perdão mortos - vivos!

segunda-feira, 11 de março de 2013

Os Manuais Escolares

Custa-me dizer isto. «Então não o digas!», diz uma voz interior, lembrando-se de polémica recente sobre a intervenção da literatura na «política». É talvez demasiado brutal e possivelmente terá um efeito devastador na edição generalista futura em papel; e, um efeito multiplicador de mais - «ainda, mais?» - desemprego.
Mas também há inevitabilidades na história do homem que dificilmente se podem travar. E talvez este seja o desemprego mais virtuoso porque estrutural e que, rapidamente, trará novo emprego (isto se alguma vez pudermos chamar ao desemprego, virtude, como se o desemprego não fosse dor e sofrimento - concreto - para vizinhos e amigos de carne e osso!)
Mas no país dos «magalhães», o que se espera para reduzir os manuais em papel à sua expressão quantitativa mais simples, substituindo-os por conteúdos e «artefactos» digitais de programas mais generalistas, adaptados, afastando a empobrecedora normalização de conteúdos? E universalizar o acesso a realidades mais concretas e a um ensino mais construído «just in time»?
Agradeceriam uma parte substancial dos pais – muitos já sem dinheiro para uma mole imensa de manuais em papel, criadora de condições iníquas de partida - os orçamentos familiares, o orçamento do todo coletivo, os lombares das crianças, agradeceria até o país vegetal.
E talvez muitas outras leituras pudessem ser privilegiadas, mais amigas da diferenciação e dos interesses específicos de realidades culturais a várias vozes, fazendo de cada leitor, um amigo.

quarta-feira, 6 de março de 2013

O Oráculo De Pedro E Cristina, Extraído Do Livro Dos Contos Siameses




Do meu livro

«O livro dos contos siameses»


o oráculo de (…)

Tirou da caixa cada peça e mirou-as de alto a baixo: uma à uma. Às trinta e seis, do naipe círculo, fez-lhes uma grande roda. Às do naipe Bambu, colocou-as em linha. Às do naipe «caractere» colocou-as, à vez, de cima para baixo em linha recta, como se cada uma se apoiasse nas costas da anterior. Às Dong, Nam, Xi, Bei, bastou-lhe abrir as mãos: foi o vento que se ocupou da sua disposição. Aos três dragões, seus protectores, Hong Zhong, Fa Cai e Bai Ban, deixou-os a esvoaçar. Às 4 pedras de flores, à Ameixa, à Orquídea, ao Crisântemo, ao Bambu, remeteu-as a aprimorar Chun, Xia, Qiu e Dong, as 4 pedras das estações. Quando as baralhou pareceu contar mais algumas. Uma tinha a forma do desespero; a outra tinha inscrito danos colaterais; a terceira, das excedentes, dizia irmãos; a quarta, em quaternário, deu-lhe um arrepio. Dizia: custe o que custar; a quinta e sexta chamaram-lhe ainda mais a atenção, porque tinha inscrito nomes. Dois nomes, apenas: Pedro e Cristina! Foi aí que lhes conheceu a história verdadeira. O oráculo nunca se enganava! E muito menos vivia levada pelo vento da rodada, na ilusão da mentira!   


(pedro e Cristina)


- Hei, tu… sim, tu! Estou-te a chamar. Não ouves? Não queres ouvir? Não levantes os ombros! Não fujas!
- Eu sei! É um problema de saúde pública.
- Desse tipo de saúde? Infecciosos? Não, não estamos infectados, nem somos leprosos! É preciso coragem? É, e muita! O que achas irmã? Não poderíamos ter usado esta coragem para nos levantarmos?
- Levantar-me, irmão? Mas eu levanto-me todos os dias, só não levanto a minha dignidade que se mantêm em baixo, dobrada ao peso dos dias. Ficámos sem casa; ficámos sem mãe; morreu o nosso anjo!
- E agora o que fazemos? Nunca trabalhámos, pelo menos desse trabalho, do assalariado, do que vende o tempo a troco de quase nada, quantas vezes a alma, que não retribui com um sorriso, uma palavra agradável, um afago, um carinho, o esforço, quantas vezes a lealdade, a amizade, a entrega, pelo menos eu, que tu eras um publicitário, um garboso publicitário, irmão lindo, cruzavas as palavras umas com a outras, rimava-as, adocicava-as, vendias ilusões, arrastavas donas de casa e consumidores, até que um dia, um homem petulante, sem coração, um dito tecnocrata, te tirou do caminho, bem sei, com mil desculpas, eu não tenho culpa, peço perdão, mas a culpa é de quem nos exige mais cada dia, uma taxa, uma sobretaxa, um imposto, um sobreposto, um custo, um sobrecusto, uma portagem, uma comissão, em nome da dívida, em nome do deficit, em nome do utilizador - pagador, em nome do pagador - poluidor, em nome da democracia, em nome da sustentabilidade, em nome da política, em nome de um povo, e uma mulher de crista levantada te tirou, nos tirou depois do teu, nosso, que tu sempre foste desprendido, solidário, generoso, o exíguo ganha - pão, o tecto, nosso pobre abrigo, levado por um senhorio ganancioso, ou talvez não, porque também pobre, ou abusado, em nome do contribuinte utilizador, pelo que lhe exigiram de imposto, reavaliado que foi o peso do seu bolso, à procura de qualquer tinido, forte com os fracos, João sem Terra, fraco com os fortes, João com Terra, com a polícia, com as forças armadas, com outros políticos, que temem, que revezam, donos das nossa vidas, até as esvaziarem, até nos conspurcarem com o mísero assistencialismo, com a derrota do estado social, seja isso o que for, aquele que não vive de esmolas, de coitadinhos, de gestos grandíloquos e incorrentes, de festas de recolha de fundos, de socialites, que se julgam o máximo, tiazinhas de trazer por casa, cheias de batom, de rimmel, de pó de arroz, quais palhaços ricos que conduzem os pobres até à ravina em que se despenham.
- E têm estes abusadores nome?
- Têm! Eles aí andam, em diferentes geografias, aos magotes, com um brilho escondido nos olhos, com contas na Suíça, imunes à crise, comentadores profissionais de trazer por casa, senhores de redes recorrentes, de interesses, de rede de negócios, de redes de maçonaria, fazedores de notícias sem novas, disfarçados de novas vítimas, algozes sem castigo, inconscientes q.b. quantas vezes das consequências das suas medidas.    
- Olha agora aqui! Aqui estamos, prestes ao sacrifício, problema de saúde pública, vírus que ateastes à nossa cidade, cada vez mais, irmãos que descartaste, sombras que não vês, entorpecida pelos vidros foscos da tua viatura, pelo lusco - fusco dos teus óculos escurecidos, ou pelo espelhado que refracte, ou reflecte e reencaminha, com que te passeias, com que te destacas, te diferencias, escuridão que ateaste, coração que se tornou metálico, endurecido, rugoso, gorduroso, cavernoso.
- Olha agora aqui, estamos aqui, nesta plataforma, forrada a azulejos, azulejos antigos, com desenhos da nossa história trágico-marítima, agora trágico - terrena, de mão dada, irmãos para a vida, irmãos para a morte, junto à estação onde sempre morámos, antes de sermos despejados, despojados do mínimo de dignidade, pela tua ideologia liberal, a vida a quem a trabalha, a vida a quem a merece, pelo esforço, pelo sucesso, pelas vitórias, pelas conquistas de todos os dias, contra a preguiça, contra as armadilhas da vida, a favor do elevador social, não oleado, travado no seu funcionamento, no seu funcionalismo, no seu mecanismo, por uma cunha, que não é um factor, apenas uma realidade da vida, a sorte e o azar, a sorte a quem a merece, a quem a procura, a morte ao fraco, ao excluído da condição, ao excluído da sorte.          
- Mas eu nasci pobre, nós nascemos pobres, não vivemos uma infância de maravilha, tivemos apenas uma mãe, que nos mimou, que nos adorou, que nos glorificou, mas nunca fomos cristãos, isso deixamos para os outros, para aqueles que dizem ter coração, para os poderosos, para os influentes, para os que vivem na teia, alguns na corrupção, mesmo que seja só dos sentidos, dos interesses, das oportunidades, dos oportunismos, nem todos são como tu, nascido em berço de ouro, inteligente, bem provido, confiante, delirante, narciso, mentiroso, da raça dos que nunca têm dúvidas, raramente se enganam, daqueles que rejeitam a sua infância, as suas raízes, a sua condição de seres frágeis humanos.  
- E agora, nós, de nosso nome Pedro e Cristina, moradores de uma outra rua de Angola, que não a Angola da nossa infância, nos cinquenta, que já não nos dá esperança no futuro, nem esperança em ti, desesperados, sós, com falta de dinheiro, em pobreza extrema, falta do outro solidário, sem abrigo nas ruas desta Lisboa, deste mundo, vizinhos dos que vivem em alçapões, em caixas de cartão, debaixo de tampas de esgoto, uns alienados, outros dormentes, outros deficientes, outros anestesiados, outros doentes, outros enlouquecidos, outros sem memória, madrasta para muitos, amiga para muito poucos, esperamos o trem que nos levará ou arrastará para sempre, para fora desta estação, desta camisa - de - forças da nossa condição, da pobreza malvada, que nos tornará para sempre viajantes sem bilhete, vitalícios fantasmas da nossa cidade, a quem chamaram outrora polis, e do teu, do seu, carácter.
 
«Fico muito triste. Eles não tinham ninguém», contou Maria Otília, 77 anos, prima afastada e única familiar notificada a M., através daquelas páginas enegrecidas do jornal da manhã, correio, no ano anterior à sua morte, ano posterior aos cem anos de comemoração da implantação da república, ano em que repousavam nos cemitérios dezenas ou centenas de milhões de vítimas da história como ensinamento, ou esquecimento, irmãos colaterais, em nome do desespero, muros de mahjong, que somos incapazes de derrubar.
Pedro A. Sande

(O desespero pela falta de dinheiro e a solidão de Cristina e Pedro, dois irmãos de 53 e 57 anos, que viveram o último ano como sem-abrigo, nas ruas de Lisboa, acabaram anteontem à noite em tragédia. Os dois decidiram pôr termo à vida, lançando-se para a frente de um comboio, às 21h30, na estação de Paço de Arcos.
Cristina teve morte imediata, mas o irmão Pedro foi ainda transportado com vida para o Hospital de S. Francisco Xavier, Lisboa, vindo a falecer de madrugada devido aos múltiplos traumatismos. As razões para a tragédia estão explicadas numa carta de despedida, encontrada no bolso das calças de Pedro – desempregado há anos, depois de ter trabalhado numa empresa de publicidade. A irmã nunca trabalhou. "Estava escrito que se sentiam abandonados e viviam em pobreza extrema devido à crise económica", diz ao CM fonte policial. "Fico muito triste. Eles não tinham ninguém", conta Maria Otília, 77 anos, prima afastada e única familiar notificada.
Cristina e Pedro viveram sempre com a mãe na casa arrendada na rua de Angola, Lisboa, até à sua morte no ano passado, aos 88 anos. Foi aí que os dois se viram despejados e tiveram de viver na rua, até terem acabado com as próprias vidas. Por: sara g. carrilho; Correio da Manhã; 21/09/2011)

Duplicados

«Tertuliano Máximo Afonso não pertence ao número dessa pessoas extraordinárias que são capazes de sorrir até quando estão sózinhas, o próprio dele inclina-se mais para o lado da melancolia, do ensimesmamento, de uma exagerada consciência da transitoriedade da vida, de uma incurável perplexidade perante os autênticos labirintos cretenses que são as relações humana (O Homem Duplicado; José Saramago; 205,206)».
Quando acabei de ler esta frase pensei como a leitura faz juz à contracapa da obra da «Caminho»: o caos é uma ordem por decifrar, extraída do «Livro dos Contrários.»
E pensei também como os autores se deixam descobrir por detrás das suas frases, como estão vestidos de uma pele chamada «Livro», pois a ouvir da minha boca estas palavras, parecia ter à minha frente o Homem Saramago e a minha própria consciência da transitoriedade neste labirinto da Terra; e, como somos duplicados. 

terça-feira, 5 de março de 2013

Viagem A Tavares

Caro Tavares,
A quem chamei filósofo
Embora te encontre nos livros
Como poeta, ficcionista
E escultor de palavras.
Poucos saberão quem és,
Nem tu o saberás por ventura.
Na tua mão está uma hermenêutica
Que te permite enamorar as frases
De um modo não possível ao simples mortal.
Na tua mansão estão dezenas de livros abertos
Cheios de figurinhas de santos e de diabos,
E centenas de cartas que atestarão
Que vives no seu seio,
No meio de sábios e de demónios,
E que com nenhum deles encetaste diálogo
Ou elucubração, fantasia, ou provocação,
E muito menos estabeleceste um pacto
Dos infernos, com sábios, diabos,
Ou com o próprio Lúcifer
E os seus temidos, irrequietos,
E leais mordomos,
Cujas lunetas encavalitadas nos cornos
Lançam centelhas
Arrasando como fogos de santelmo
A inundar e a bordejar a porta desses drenos
A que chamam poços dos infernos.

Esta viagem iniciada a Tavares
Lá onde mora Gonçalo M.,
Soube-nos a pouco,
Mas é porque o ar ainda está frio
No revirar das páginas
E das lombadas,
E o nosso corpo e o teu olhar
Nos parece enregelado,
E as nossas mãos ainda parecem
Lisas sombras, nada carcomidas,
E temos medo de nos precipitarmos
Nesse desfiladeiro às portas do abismo
E nos encontrarmos face a face com,

O senhor Juarroz, ou o senhor Valéry,
Ou o senhor Henry, ou o senhor Brecht,
Ou o senhor Calvino, ou o senhor Walser,
Ou o senhor Breton, ou o senhor Swedenborg,
Ou o senhor Eliot,
Já para não falar na máquina de Walser,
Ou no senhor Klaus Klump,
Ou sentirmos, como num laboratório,
Que se poderia - porque não? - chamar de (…),

(Que a publicidade não é para aqui vinda!),

Laboratório Novalis.

E, arrastados pelo medo, pela ciência
E por ligações geométricas,
À perna Esquerda de Paris
Seguida ao perto
Pela do Roland Barthes e do Robert Musil,
Boiando, como aspirina em água,
Na colher de Samuel Beckett,
Ou,
Em Matteo que perdeu, desgraçadamente,
O emprego,
Encantado por uma sereia
Que encanta não pela beleza,
Ou pela graciosa cauda,
Mas pelo olhar.

(Quem não o perde agora, entretanto?,
Ao emprego?

Mais a mais se semear tamanhas,
E curvilíneas, pantominas?
Há quem lhe chame, viagens, delírios,
Sarcasmo, invejas,
Há mesmo quem ache
Uma imatura prova dos nove,
Uma velatura,
Com o invólucro todo,
De asno),

Ou com o senhor
Desse território a que chamam
Para além de Jesus,
Porventura o território
A que outros chamam de,
Jerusalém.

Caro Tavares
Toma atenção,
Porque só repito uma vez
Porque perdão e atenção
Só se obtêm
Em tempos de tanta avidez,
Como prova de enorme generosidade.

Não foste tomado pelos raios solares
Mas pelo incómodo de nos receberes
Nesta peregrinação pelos demónios
Do teu olhar,
Nesta procissão que te dá como um ser
Profusamente racional,

(Que de fé, se tem a razão?),

Um cartógrafo ou um geómetra,
Um epicurista, um cínico,
Desta nossa viagem, Gonçalo,
A um lugar que não encontrei no mapa,
Nesta nossa caminhada
Pelos lugares que habitas,

Nesta nossa viagem
A esse teu cantinho,

Nesta nossa viagem
A esse teu lugar improvável
De filósofo,

(De atomista a sofista,
De céptico a epicurista,
De estóico a escolástico,
De teocêntrico a cartesiano,
De empírico a positivista,
De marxista
(Materialista da história, Gonçalo?,
A existencialista),

Nesta nossa viagem à tua terra,
À terra da tua escrita,

Nesta nossa viagem,
Com a tua física e a tua química,

(E há quem te diga só um filósofo,
Quando está provado
Pelo acima posto e exposto
Que usas a trincha,
E a salpicas pelo
Corpo todo)

Nessa viagem
Que há muito iniciaste
E que partilhas
Com generosidade,
Nessa viagem
Que dobra vezes sem conta
O percurso à Índia,

Nessa viagem afinal,
A esse lugar mais do que provável,

Nessa viagem a Tavares.

PAS

segunda-feira, 4 de março de 2013

«Teimozia»

Não tenho pela teimosia a maior das considerações. Talvez a palavra mais adequada fosse, «admiração». Pela persistência, sim, e mesmo assim só quando segue os cânones da «convivialidade», da ética social e da humildade.
Teimoso é o chefe que lidera diretivamente , não o que tem uma liderança participada; teimoso é o homem do leme, que teima no erro, não alterando o sentido do seu rumo, levando-o em direção aos rochedos e à tormenta; teimoso é o ator que mantêm o guião apesar do enfado do espetador; teimoso é o Homem que impulsivamente invectiva a nova ortografia sem lhe tomar o pulso (já fui teimoso e ando-me a tratar; e libertando-me do lastro, sinto-me mais leve); teimoso é o que acha a sua teimosia, persistência, «porque, não!»
Não tenho pela teimosia a maior das considerações: mas neste particular e em todos os que dêem à cabeça a forma de cabeçudo, pela leitura e pela reflexão sua associada, até propunha uma nova forma ortográfica para esta palavra: «teimozia.»

sábado, 2 de março de 2013

Anorexia Do Discurso e Da Palavra

Há quem pense que escrever bem é sempre escrever curto e fino, enxuto, com isenção de calinadas linguísticas, de redundâncias curvilíneas, de gongorismos incríveis, como se fosse um homem ou uma mulher magros, quase anoréticos, dentro de um elegante fato de um corte que cai a direito. Só que escrever bem não pode ser só esta coisa sem graça, estando para a escrita enxuta e fina como o homem e mulher magros e desprovidos de carnes - os só ossos, com pouco para dizer e fazer para além da magreza de argumentos e de testamentos de vida - para aqueles a quem repousam gordurinhas inestéticas, cheias de uma carninha que os faz coisa despreocupada e apetecida - e vida para além de um corpses que já cheira a coisa acabada e a morte.

Engenheiro De Palavras

Ontem fomos designado de «engenheiros de palavras». Ripostei intempestiva, talvez extemporaneamente. Talvez o não devesse ter feito. Olhando ponderadamente, um  engenheiro de palavras só fica a dever a um arquiteto de palavras. Os tijolos são o alfabeto; o cimento, as plantas e os esboços, o desenho frásico.
Uma afronta,  pensei no momento, face ao carrego de conhecimentos carreado como arquiteto, quase escravo, de pirâmides e tômbolas de palavras e quando as lideranças ainda cheiram a algum mofo de usos e costumes de más práticas. Puxei de Maria José Sousa, uma guru de RH, uma orientadora de um mba ao estilo, «master but not arrogant.» 
Não pela sua mão ou pelo seu saiote, claro, mas naquele livro de cor esverdeada, de métodos e «boas práticas» de gerir humanos com muitos ganhos e poucas perdas. Emaranhei-me nele, «fuçando» no seu miolo. Lá está!, sabia que lá estava: líder é aquele que, utilizando o poder de referência e o  poder do saber, harmoniza as relações entre os operadores num contexto, negando-se ao  autoritário ou diretivo, assumindo o democrático mais conhecido como o participativo ou consultivo. 
Como dizia um velho general, num velho manual: nunca digo como havemos de lá chegar, pergunto, sim, como o havemos de fazer. Uma questão de sinergias, de inteligência emocional gestionária, de ganhos mais do que perdas, de individual para o coletivo. 
Não é fácil normalizar e convergir para o mundo de adriano (moreira!): um mundo de convergência a uma só voz! Mas lá chegaremos, derrubando muros (de palavras)!